O Património Cultural na Era da Inteligência Artificial
Num mundo digital que caminha rapidamente para “desintermediação”, o património cultural português enfrenta os desafios e as promessas da IA para preservar a sua voz.

A forma como hoje descobrimos e interagimos com a cultura está a ser reescrita por algoritmos. Durante duas décadas, a Google foi a referência da internet, o principal orientador dos nossos caminhos digitais, cuja barra de pesquisa era o ponto de partida universal.
Agora, os motores de busca começam a lidar com a emergência da IA Generativa, não como uma concorrente direta das palavras-chave, mas sim como uma ferramenta num jogo inteiramente novo.
Funcionalidades que apresentam respostas diretas no topo da página de resultados, ilustram bem esta mudança. São “sinopses” fornecidas por IA, que podem levar o utilizador a já não sentir necessidade de clicar nos links que o levariam aos websites que possuem a informação de origem.
Para as instituições culturais portuguesas, muitas delas a operar com orçamentos modestos e equipas reduzidas, esta aparente eficiência algorítmica pode traduzir-se numa quebra de tráfego direto, com implicações que vão desde a divulgação de eventos até à capacidade de contar a sua própria história.
E o desafio não se limita aos motores de pesquisa. Plataformas como o TikTok, inicialmente vistas como meros espaços de entretenimento efémero, transformaram-se, para as gerações mais novas, em ferramentas de busca alternativas, onde o vídeo curto e a descoberta visual são privilegiados.
O comportamento de pesquisa está a fragmentar-se, a tornar-se mais experiencial e menos dependente do texto. Esta transição pode ser melhor compreendida observando algumas das suas características centrais:
Se não conseguir visualizar as tabelas corretamente, basta clicar sobre as mesmas.
Perante esta avalanche de transformações, onde a própria noção de descoberta é reinventada a cada novo algoritmo, impõe-se uma reflexão sobre questões centrais para a missão cultural:
Estarão as instituições do património cultural português verdadeiramente atentas às dinâmicas e aos anseios das suas audiências online, ou continuam a operar com base em métodos que já não respondem às atuais exigências?
Serão essas audiências online genuinamente consideradas como um público participativo e vital, ou a presença digital resume-se a uma formalidade administrativa, cumprida sem uma estratégia de envolvimento clara?
E, mesmo que esse reconhecimento exista, que combinação eficaz de relevância e acessibilidade terão de encontrar para se manterem visíveis e pertinentes no complexo ecossistema informativo atual?
Portugal, é justo referir, não tem estado indiferente ao movimento de digitalização. Têm sido desenvolvidos esforços significativos que visam a disponibilização online de acervos digitais e a criação de experiências virtuais em arquivos, monumentos e museus, demonstrando um compromisso com a modernização.
Diversas entidades têm sublinhado a importância da digitalização de coleções e do desenvolvimento de tecnologias de informação para o setor. Parcerias com plataformas globais, como é o caso do Google Arts & Culture e da Europeana, já permitiram a divulgação online de milhares de obras de instituições portuguesas, expandindo, teoricamente, o seu alcance para além das fronteiras físicas.
No entanto, a transição do plano estratégico para a prática quotidiana das instituições culturais é, frequentemente, um percurso com obstáculos consideráveis.
A simples existência de repositórios digitais, por mais ricos que sejam, não garante a sua descoberta ou fruição, especialmente se os algoritmos de Inteligência Artificial, cada vez mais sofisticados nos seus critérios de seleção, não os conseguirem interpretar corretamente. É como possuir uma biblioteca imensa cujos volumes não estão devidamente catalogados para o novo sistema de consulta.
Análises ao setor em Portugal, refletindo preocupações partilhadas internacionalmente, apontam para lacunas persistentes:
Carência de competências digitais especializadas entre os profissionais;
Recursos financeiros e tecnológicos limitados que dificultam investimentos mais robustos;
Ausência de estratégias digitais coesas e atualizadas que acompanhem a rápida evolução tecnológica.
Por vezes, os próprios websites institucionais, o principal ponto de contacto digital para muitos, parecem desatualizados, com interfaces pouco intuitivas ou informação dispersa, tornando-os menos eficazes na era da “desintermediação” pela IA.
Os utilizadores, habituados à instantaneidade, podem preferir um resumo gerado por IA, mesmo que simplificado, a um portal menos ágil.
O panorama para o património cultural português, face à IA, apresenta-se assim com uma dualidade de desafios e perspetivas:
Apesar destes desafios, surgem focos de criatividade que, embora meritórios, sublinham a urgência de uma abordagem mais sistémica e integrada.
A questão central desloca-se da mera digitalização para a “interpretabilidade” dos conteúdos pela Inteligência Artificial. Para que o património cultural português seja encontrado e compreendido pelas novas ferramentas de pesquisa, é preciso “alimentar” estas IAs com informação de qualidade. Isto implica uma evolução do tradicional SEO (Search Engine Optimization), focado em palavras-chave, para um “SEO orientado para IA”.
Trata-se de um esforço que exige metadados ricos, descrições detalhadas e dados estruturados que permitam aos algoritmos captar a complexidade e a veracidade do acervo cultural. Sem este trabalho de curadoria para as máquinas, a multiplicidade do património cultural corre o risco de ser reduzido a generalizações ou, pior, a interpretações enviesadas.
A missão das instituições culturais, tradicionalmente guardiãs e intérpretes da informação, vê-se assim expandida. Passa a incluir a curadoria ativa da sua presença digital, inclusivamente, para consumo pela IA, assegurando que as narrativas culturais sejam transmitidas com precisão e respeito. E isto levanta questões éticas de fundo:
Quem define os dados de treino das IAs?
Como se previnem os enviesamentos que podem perpetuar exclusões ou distorções históricas?
Como se protege a propriedade intelectual?
Face a estes dilemas, torna-se imperativo que as próprias organizações do património cultural promovam um debate interno e setorial profundo, procurando ativamente respostas e delineando estratégias concertadas que visem mitigar os riscos e maximizar as potencialidades de forma ética e sustentável. A inação ou a simples observação passiva não são opções viáveis perante a magnitude e a velocidade das transformações em curso.
A transformação digital, impulsionada pela IA, não é, portanto, um mero desafio tecnológico; é, fundamentalmente, um desafio cultural profundo que exige uma reavaliação premente do papel das instituições e dos profissionais do património.
A Inteligência Artificial não é uma tendência passageira, mas uma realidade instalada que não pode ser ignorada. Daí a necessidade crítica das organizações do património cultural acompanharem ativamente este desenvolvimento, não apenas para se manterem relevantes, mas, também, para poderem intervir e mitigar os problemas que a IA inevitavelmente origina quando não dispõe dos conteúdos corretos, verificados e contextualmente ricos para o seu treino.
Investir em programas de formação contínua e abrangente é crucial, mas a literacia digital e em Inteligência Artificial transcende a simples aquisição de competências técnicas. Trata-se de cultivar uma compreensão crítica e estratégica destas ferramentas, capacitando os profissionais não só para as utilizar, mas para questionar as suas implicações, antecipar tendências e adaptar as suas práticas de forma ágil e informada.
Esta literacia deve tornar-se uma competência transversal, intrínseca à missão de quem trabalha com a memória e a cultura, acompanhada de uma reflexão crítica constante sobre o impacto ético e social destas tecnologias.
Para nos guiarmos neste novo cenário, destacam-se alguns imperativos estratégicos:
A resposta não está numa tecnofobia paralisante, nem numa adesão acrítica a todas as novidades. Reside, sim, na procura de um equilíbrio sensato: utilizar a IA como uma ferramenta poderosa para a preservação, para a investigação e para a criação de novas formas de acesso e envolvimento, mas sem nunca abdicar do discernimento humano, da sensibilidade interpretativa e do compromisso com a verdade histórica.
O futuro da presença digital do património cultural português será, inevitavelmente, co-construído com a Inteligência Artificial. A questão que se coloca não é se as máquinas terão um papel, mas que papel lhes será atribuído e quem orientará a sua aprendizagem.
Se as instituições culturais portuguesas abraçarem este desafio com visão estratégica, colaboração e um investimento sustentado em competências e dados de qualidade, poderão não só garantir a sua visibilidade num mundo digital em constante mutação, mas também enriquecer a forma como as gerações futuras se conectarão com o seu legado.
As ferramentas digitais podem ser úteis, mas somos nós, em última análise, que deveremos assegurar que as histórias que se contam são as que merecem ser lembradas.


